Discriminação, violência, supressão de direitos e sua particular incidência na vida das mulheres negras no Brasil tornaram-se objetos de reflexão por defensoras e defensores públicos nos dias 23 e 24 de setembro de 2016. Em parceria com a ANADEP, Fórum Justiça, PUC-Rio, ADPERJ e Defensoria Pública do Rio de Janeiro, o curso “Ação Estratégica para uma Perspectiva Interseccional da Defensoria Pública com foco em Gênero e Raça”, reuniu um conjunto único de professoras, juristas, representantes de movimentos sociais e culturais em torno da temática. Sob a lente do recorte de gênero e raça foi possível identificar as várias camadas de discriminação e ineficácia das políticas públicas no que toca a determinados grupos sociais, em especial as mulheres negras. Num jogo de espelhos, foi lançado um olhar meticuloso sobre a própria instituição Defensoria Pública e suas assimetrias de funcionamento, composição (inclusive dos cargos da administração), gestão e relacionamento com as usuárias. O debate deu o pontapé inicial para um processo de vigilância e reivindicação juntos das Defensorias, facilitando uma articulação política nacional e permanente entre Defensoras Públicas. De acordo com uma das idealizadoras do evento, a Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro, Rosane Reis Lavigne, dentre as ações decorrentes do curso encontra-se a formação do Coletivo de Mulheres Defensoras Públicas, ocorrida logo após a finalização da mencionada atividade. O novo Coletivo tem o compromisso de contribuir para o fortalecimento institucional em atenção a demandas por direitos das mulheres, com ênfase no combate ao racismo. “Esse acúmulo vai propiciar pensar em novas estratégias para combater as desigualdades estruturais latentes. No futuro, olharemos para trás e veremos como este curso foi histórico” – afirmou. Políticas Públicas X Racismo Segundo o Mapa da Violência, em 2016, ano em que a Lei Maria da Penha completou 10 anos, o assassinato de mulheres negras cresceu 54%, enquanto o de brancas diminuiu 10%. “Como é possível?” – questionou em sua palestra a coordenadora da ONG Crioula – Lúcia Xavier. Segundo ela, no Brasil, a experiência da mulher negra, por si, enquanto identidade, não deveria acarretar para estas mulheres nenhum tipo de desvantagem. Contudo um processo extremo de vulnerabilização social vem à tona quando as mulheres negras deparam-se no interior de um sistema discriminatório com o entrecruzamento de uma variedade de opressões de raça e gênero. As várias palestras enunciaram uma denúncia contudente do racismo institucional. Sobre a saúde, a médica e coordenadora técnica da Criola, Jurema Werneck, apresentou dados nacionais do Sistema Único de Saúde que demonstram o alto índice de mortalidade das grávidas mulheres negras, comparado às grávidas mulheres brancas, por pré-eclâmpsia (pressão alta); isto a despeito de realizarem o pré-natal ao longo da gestação. Isso indica que o racismo opera uma denegação sistemática de acesso à saúde e atendimento de qualidade à mulher negra devido exclusivamente à sua condição de mulher negra. “Existe lei, direito, Constituição, como é possível que, ainda assim, as negras morram mais? Porque o racismo institucional vive solto. O resultado ruim da política pública não vem da origem desigual, mas porque se permite que ela progrida no acesso ao direito.” – explicou Jurema. De fora dos serviços públicos, mas dentro do sistema carcerário. De acordo com dados do Infopen, do Ministério da Justiça, a mulher negra compõe 67% das 37 mil encarceradas em todo o país. De 2000 a 2014, essa população feminina cresceu inacreditáveis 567%. A maior parte delas é presa por tráfico. A advogada Maíra Fernandes, integrante do Conselho Penitenciário do Estado do Rio, apresentou sua pesquisa feita com 41 mulheres, grávidas ou já com seus bebês, do Talavera Bruce, em Bangu. Dessas, 70% são rés primárias e estão presas cautelarmente. A maioria entrou na prisão em estado avançado de gravidez. “Associar a primariedade da pena e da gestação já mostra o quanto essa prisão era inteiramente desnecessária e foi mantida pelo Poder Judiciário” – afirmou Maíra. Mediadora da mesa de encarceramento, a Ouvidora da DP do Estado do Rio Grande do Sul, Denise Dora, traçou um paralelo entre a situação das encarceradas e regimes ditatoriais e de exceção, em que não existiam direitos. O caso da separação autoritária das mulheres encarceradas grávidas, em sua maioria negras, e dos seus filhos recém-nascidos nada mais sinaliza do que uma re-edição da lei do ventre livre. “A atuação da Defensoria Pública não pode ser complacente com isso” – alertou Denise Dora. Ainda segundo ela, muitas vezes, o Defensor (a) que atende a assistida não enxerga nela uma história marcada pelo racismo. “Daí a importância deste curso, que desvenda uma realidade já naturalizada” – completou. Representatividade no Sistema No painel Advocacy e Litígio Estratégico no Âmbito Interno e Internacional, a Defensora Interamericana, Rivana Ricarte, a primeira mulher brasileira a ser indicada e a ocupar o cargo na Corte, apresentou os números da desigualdade de gênero dentro do próprio sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Segundo ela, desde a criação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 1979, dos 37 juízes que ali passaram apenas cinco eram mulheres. Na Comissão da IDH não é diferente. Em 56 anos de existência, nos quais atuaram 70 Juízes comissionados, apenas 12 eram mulheres. “Para um espaço que luta pela igualdade, não há abertura para mulheres, negros e indígenas em posições de poder” – afirmou Rivana. De acordo com a Defensora, no Estatuto da CIDH, não há preocupação em realizar uma discriminação positiva com reservas de vagas que assegure a representação de gênero e raça na composição da Comissão Interamericana. “Não há sequer a flexão de gênero no texto do estatuto nem no texto do Regulamento da Corte” – contou.