O resultado do julgamento do HC 126.292, que decidiu pela execução imediata da pena de prisão, a partir da decisão condenatória proferida em grau de apelação, ainda que pendentes recursos para os tribunais superiores, representa um grave retrocesso no processo de efetivação dos direitos e garantias fundamentais, passados já quase 30 anos do nascimento da atual Constituição da República, democraticamente elaborada, votada e promulgada pela Assembléia Nacional Constituinte eleita pelo voto popular.
O princípio da presunção de inocência (também conhecido como princípio da não culpabilidade) está previsto no art. 5º, LVII, da Constituição, em termos taxativos: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Como corolário do princípio maior do devido processo legal, o referido dispositivo constitucional proscreve a atribuição de responsabilidade penal enquanto não exaurido o exercício da ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes. Daí por que somente após o trânsito em julgado, momento a partir do qual a decisão condenatória poderá ser considerada definitiva, será possível a responsabilização penal, e, consequentemente, o início do cumprimento da pena.
Não se espera do Guardião da Constituição que formule controversa interpretação do art. 5º, LVII, da Constituição que, a pretexto de se pautar por argumentos estritamente técnico-processuais, em verdade derroga uma garantia individual. O entendimento adotado pela Corte não se sustenta frente aos postulados da moderna hermenêutica constitucional, notadamente o da máxima efetividade, representando um grave retrocesso na árdua caminhada rumo à concretização do sistema de direitos e garantias fundamentais idealizado pelo Constituinte.
Em 2009, sob os influxos do processo de constitucionalização do direito, a jurisprudência da Suprema Corte deu importante guinada em matéria processual penal, passando a entender que a execução da pena antes da decisão condenatória definitiva – assim entendida aquela não mais sujeita a qualquer recurso – é incompatível com a presunção de inocência, tal como enunciada pelo texto constitucional. O precedente foi firmado no julgamento do HC 84.078, relatado pelo Min. Eros Grau. “A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar” (assim, por exemplo, para garantir a eficácia de uma eventual decisão condenatória, quando comprovado o risco real do réu se evadir com o objetivo de frustrar a aplicação da futura pena; bem como para assegurar a efetividade das investigações, quando comprovado o intento do réu de ocultar provas, embaraçando a instrução do processo).
A decisão relatada pelo Ministro Eros Grau consolidou um longo e ascendente processo histórico de afirmação da liberdade e do prestígio do estado de inocência presumida que começou a ganhar significativo impulso com a abolição da prisão preventiva obrigatória e ocupa lugar definitivo na tão sonhada conquista do Estado Democrático de Direito ainda na década de 80.
O pêndulo jurisprudencial da Corte Suprema, em lamentável retorno a uma equivocada flexibilização de uma das mais expressivas cláusulas pétreas de nossa Constituição, abala a confiança dos brasileiros naquele que deve, em última instância, fazer valer os seus direitos contra o arbítrio estatal, atingindo em cheio e duramente a clientela da Defensoria Pública, assídua frequentadora dos Tribunais Superiores, descabendo o falacioso argumento veiculado pela imprensa de que somente serão afetados aqueles que podem constituir advogados particulares.
A interpretação conferida ao art. 5º, LVII, no julgamento do HC 126.292, afasta-se dos limites imperativos e claros – claríssimos - do dispositivo, tendo por resultado a restrição indevida de uma garantia fundamental concebida pelo legislador constituinte. Não se discute aqui o acerto ou o desacerto da decisão sob o aspecto puramente técnico-processual ou de convicções pessoais. Há que respeitar a vontade do constituinte originário, que legitimamente encarnou a soberania popular. O ativismo judicial levado às últimas consequências subverte o desenho institucional do Estado.
O Estado de Direito foi concebido a partir das ideias básicas de separação de poderes e de direitos individuais de liberdade, em contraposição ao Estado Absolutista, cuja soberania se concentrava unicamente na figura do monarca. O ideal contratualista de soberania popular, contudo, levado ao extremo na Europa continental do século XIX, culminou no apego quase que absoluto à lei, como ato geral e abstrato emanado do Parlamento. O fracasso desse modelo, simbolizado pela ascensão dos regimes nazifascistas na primeira metade do século XX, levou à criação e ao fortalecimento de órgãos contra majoritários com a função de assegurar direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, retirando-os do poder de disposição pela vontade da maioria. Este o papel precípuo das Cortes Constitucionais nos chamados Estados Democráticos de Direito. A preeminência alcançada pelo Judiciário, porém, não pode resultar em um modelo de supremacia judicial, algo próximo a um governo de juízes, com efeitos deletérios à democracia e à segurança dos direitos.
O Estado de Direito – rule of Law – afirmou-se em oposição à concepção indiferenciada da Política e do Direito, sintetizada na célebre frase do Rei Sol: l’Etat c’est moi. A barbárie do mundo contemporâneo exige, cada vez mais, atuação equilibrada do poder e do direito, e impõe que cidadãos e operadores jurídicos não assistam à trágica conclusão dos grandiosos anseios civilizatórios da modernidade na fórmula Le droit c’est moi.
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